Não há o que discutir, houve golpe em 1964
Alexandre Douvan
Antes de mais nada, aviso a quem lê que este é um texto expositivo sobre
alguns eventos que marcaram o período entre 1964 e 1984 no Brasil. Contra fatos
não há argumentos.
Em “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura
militar”, Carlos Fico expõe a historiografia do golpe de estado buscando
desmistificar certos pontos nebulosos do período, como a atribuição de “moderado” ao general-presidente
Humberto de Alencar Castelo Branco (1900-1967), entre outras coisas. Tomando o
caso do general como ponto de partida neste texto – e também é o primeiro exemplo elencado por Fico
ao discorrer sobre as controvérsias –, pode-se dizer que a imagem
construída sobre a figura do militar não é compatível com os fatos. Em comparação com a
atuação dos seus sucessores, é chamado de “moderado”
e “legalista”, tese esta
que é facilmente
derrubada por meio de uma rápida observação dos registros do período. Foi
durante o governo de Castelo Branco que fora outorgado o Ato Institucional nº 2 (AI-2). A
censura às
artes e as restrições ao trabalho jornalístico foram amplas. A tortura, que
determinados grupos negam que houvesse, arrastou-se durante todo a ditadura
militar.
A “operação limpeza” estava claramente presente desde a
aurora do regime. A notar pela perseguição a estudantes inclinados aos ideais
progressistas, à dissolução do Parlamento e ao processo de proibição de divulgação
de ideais políticos. Um dos estereótipos que julgavam os militares que
compartilhavam dos círculos de Castelo Branco era de possuírem "formação mais refinada”. O general
tornou-se “presidente” contra a vontade de Costa e Silva,
que se autodenominara “Comandante-em-chefe do Exército Nacional” e líder do "Comando Supremo da
Revolução”.
Fico adverte que os estudos abordando
o período 1964-1984 são recentes; lembra que em 1994 fora organizada uma mesa
de discussões sobre os trinta anos do golpe de estado e raras pessoas se
interessaram pela temática.
Já o AI-5,
instituído
em 1968, durante o regime do também general Arthur da Costa e Silva, fez
com que o modelo repressivo operante da época se tornasse muito mais nítido. A
perseguição a todos que discordassem do regime passou a ser descarada. O músico Raul Seixas foi
"convidado a se retirar” do país após sua música “Sociedade Alternativa” ter sido
barrada pelos censores do governo – isto não significa que não houvesse falhas
por parte dos censores, muitas músicas com letras bem elaboradas e não tão
explícitas conseguiram ser aprovadas sem maiores problemas; números de comédia, peças de teatro, filmes e novelas também conseguiram burlar os métodos de censura.
Dando continuidade à reflexão sobre os fatores que envolvem a
ditadura militar que perdurou por vinte anos neste país, Fico evoca uma tese de
doutorado* apresentada em Coimbra no ano de 1969. O autor, Alfred Stepan, expôs
que a atuação dos militares ocorreu em circunstâncias singulares, onde tiveram
o nicho para tomar o poder. Alfred chama o golpe de revolução, atribui a
eficácia do movimento à "inabilidade" de João Goulart em “reequilibrar o sistema político”. Os boatos de que Goulart estaria
aliado aos comunistas (pela lógica, um governo comunista
centralizado é um contrassenso) e pretendia trazê-los para o Brasil,
dizia-se também
que Goulart tramava reorganizar as Forças Armadas para que, assim, tivesse seus
aliados de armas em punho. Para todos os efeitos, nada precisava ser comprovado
(mesmo que fosse, qual o problema?). Era a legitimação que até os dias correntes é engolida por grande parte das pessoas
– narcotizadas pelos mitos, diga-se de passagem.
A tese de Alfred Stepan nos é importante por um motivo: prova que,
mesmo com todo o aparato de proteção aos dados e repressão aos civis, era
possível ter acesso aos documentos que comprovavam o modelo operante do
governo.
Outro
acadêmico,
Wanderley Guilherme dos Santos, apresentou uma tese** na Universidade de
Stanford (EUA) em 1979, na qual buscou explicar os conflitos internos do país
no período. Para Santos, o sistema político brasileiro sofrera um colapso, por
conta da falta de coesão entre os representantes políticos, que não chegavam a
acordos sobre as questões do parlamento.
Análises das mais diversas são feitas
sobre o período militar, tanto coletando dados empíricos e os estudando a partir
da coerência da própria individualidade do caso, quanto evocando nomes do
pensamento político mundial para traçar uma linha de interpretação dos eventos
que pudesse se legitimar. Uma das questões mais pertinentes que se coloca ao
analisarmos a cronologia dos acontecimentos e os conflitos internos do próprio
regime é que a escassez de informações e o controle da imprensa pelo governo
(com mecanismos institucionais de censura) muitas pessoas nos dias correntes
chegam a dizer que os 20 anos de ditadura foram positivos para o país, que não
havia corrupção e o que chamam de moral e bons costumes eram respeitados. Uma
das questões principais a pensarmos é que essas pessoas caíram na armadilha de
um governo que coíbe a imprensa livre, passaram a vida sendo informadas quase
que totalmente por meio da propaganda e, quando se tornou possível que jornais
publicassem escândalos dos governos nacionais sem sofrer perseguição, tortura e
assassinato, muitas pessoas se assustaram com o mundo sem regras que sempre
existiu, mas que antes não era mostrado. Não surpreende que muitos queiram o
retorno do tempo em que eram enganados, afinal de contas a indignação só existe
para com aquilo que vemos e compreendemos.
* Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira (1969).
** The
calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and crisis of 1964
(1979).
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